Coluna Conversa de Pista: Um encontro com Schumacher

A Coluna Conversa de Pista é escrita pelo jornalista especializado Wagner Gonzalez
A Coluna Conversa de Pista é escrita pelo jornalista especializado Wagner Gonzalez

A história de uma entrevista one-to-one na pista de Fiorano

No último dia 3 Michael Schumacher completou 50 anos e muito se falou sobre suas conquistas, momentos marcantes e acerca do acidente que o afastou da vida pública quando esquiava com seu filho em Meribel, nos Alpes franceses, em dezembro de 2013. No dia 8 de janeiro de 2014, exatos cinco anos atrás, investigações de autoridades francesas levaram à conclusão que o piloto estava esquiando fora da pista demarcada e que não tentou diminuir a velocidade antes de sofrer uma queda quase fatal.

O fac-simile da entrevista exclusiva publicada no jornal O Estado de S. Paulo de 29/3/1996

Durante anos convivi com Schumacher nos autódromos e circuitos onde a F-1 de apresentava. Dias atrás lembrei de uma manhã de sábado, cerca de 23 anos atrás, quando passei um bom tempo conversando com o heptacampeão na pista de Fiorano (foto de abertura), encontro que rendeu a entrevista de página inteira publicada no jornal O Estado de S.Paulo na sexta-feira, 29 de março de 1996. Foi impossível ficar indiferente e refletir sobre algumas de suas declarações. Previsto para durar uma hora, o encontro estendeu-se por pouco mais que o dobro, tempo suficiente para conhecer o outro lado de um piloto tido como frio e calculista. Mais do que isso, nos aproximou bastante e teve consequências positivas em alguns momentos mais conturbados no corre-corre de alguns GPs.

O alemão contornando a curva La Source, antiga Maison Blanche, em Spa 1996 (Ferrari)

Um desses momentos aconteceu no GP da Bélgica desse ano, quando conquistou sua segunda vitória pela Ferrari, time onde conquistou cinco dos seus sete títulos mundiais. Terminada a corrida demorei um pouco mais que o esperado para ir da cabine de transmissão da Telefe (emissora de TV argentina onde atuei como comentarista por vários anos) e cheguei quando sua coletiva no motorhome da Ferrari estava terminando. Em outras palavras era como ficar sem a entrevista do vencedor da prova; meio sem jeito, fiquei esperando uma oportunidade para lhe dar parabéns e quando tentava uma solução alternativa Schumacher se adiantou e me salvou:

“Tenho um briefing de 20 minutos com a equipe e depois vou para o estacionamento. Me espera naquela porta ali e gravamos enquanto caminho até o meu carro. Tudo bem?”

Michael Schumacher a bordo do Ferrari F310 que pilotou na temporada de 1996 (Ferrari)

Tudo bem nada: tudo ótimo. Eu e o cinegrafista Juan Fossaroli, hoje repórter da Fox  da Argentina, esperamos ali no cantinho do motorhome. Vinte minutos mais tarde a reunião acaba e Schumacher vem em nossa direção e fazemos a entrevista enquanto caminhamos algumas centenas de metros, distância suficiente para evitar que o dia tivesse final digno de tango… E lembrar que tudo começou com uma pauta sugerida por Ryo Tsujioka, jornalista que me abriu as portas do mercado japonês ao me convidar para fazer parte da equipe da revista Grand Prix Sports. A GPS era uma publicação típica do mercado nipônico: tamanho próximo a uma folha A3, extremamente colorida e com ilustrações enormes.

Tsujioka era um companheiro interessante de viagens e tinha várias manias: menos de vinte mil yens (algo próximo de oitocentos reais…) no bolso o deixavam inseguro o suficiente para fumar com intensidade de fazer inveja a amigos como Almyr Vidal Júnior e Bob Sharp. Em velocidade de cruzeiro Tsujioka-san acendia o próximo cigarro com a bituca do último. Durante uma noitada em que ele me levou a conhecer vários botecos em Tóquio, no intervalo entre os GPs do Pacífico (22/10) e Japão (29/10) de 1995, ele quem me incentivou a tentar uma “one-to-one”- como uma entrevista exclusiva é descrita em inglês -, com Michael Schumacher. No fim de semana de Suzuka iniciei os contatos com Heiner Buchinger, um alemão boa praça que na época era o assessor de imprensa de Schumacher, e ficamos de falar “em breve”.

Passa o tempo, acaba o ano e silêncio de rádio. Começa a temporada de 1996 e retornamos para a Austrália, desta vez para Melbourne e não mais para Adelaide, onde a temporada anterior havia terminado. No paddock de Albert Park a confusão era grande, mas acabei cruzando novamente com Bucingher, que me reconfortou:

“Em breve você vai ter uma notícia boa…keep cool!”

Volto para casa após a estreia de Schumacher na Ferrari; Damon Hill venceu a prova e o alemão, que largou em quarto, abandonou na 32avolta com problemas nos freios. Tarde de quinta-feira, toca o telefone em meu apartamento em West End Lane, rua londrina que demarca o final da famosa Abbey Road. Do outro lado da linha ouço o assessor de imprensa de Michael Schumacher me dar boas notícias:

“O Michael vai testar sábado em Fiorano e consegui reservar uma hora para você entrevista-lo após o treino. Tudo bem?”

Tudo ótimo. Já naquela época conseguir uma exclusiva com um piloto de ponta, em particular o recém-chegado na Ferrari, era algo que demandava muitas negociações e muitos contatos nos lugares certos. Tarde de sexta-feira, entre fazer check-in em Heathrow e embarcar no Airbus A300 da Alitalia noto uma livraria expondo “Theories of the Universe”, obra de Stephen Hawkins lançada havia pouco mais de um mês; achei que seria legal oferecer esse livro ao piloto como forma de agradecer sua deferência em me receber.

De Milão a Maranello são pouco menos de 200 km e lá fui eu. Sábado de manhã faço a prima colazionenum pequeno hotel de Modena e nem notei o tempo um tanto fechado. A cada quilometro rumo a Fiorano, onde fica a pista de prova da Ferrari, a névoa aumentava tanto quanto minha preocupação: com aquele tempo era difícil acreditar que o teste aconteceria e que o piloto ainda estivesse na casa de Maranello… Vale explicar a diferença entre Maranello e Fiorano, algo mais ou menos assim: você entra em sua casa pela porta social e está em Maranello; você entra pela porta de serviço, está em Fiorano.

Schumacher na pista de Fiorano: ao fundo os galpões do Riparto Corsaem Maranello (Ferrari)

meio dia chega o grande momento e Michael Schumacher, ainda de macacão, me recebe. Entrego-lhe o livro de Stephen Hawkins: ele olha, agradece o presente e, num gesto que sugere indiferença, o coloca de lado. Começamos a conversar, o papo vai ficando cada vez mais solto e quando lhe pergunto sobre algum piloto que o tenha inspirado, ele retesa as mãos, gerando um ar algo tenso no ambiente e sua resposta é entre o lacônico e o respeitoso:

“Acho que falei muito a esse respeito. É muito triste ter de falar sobre o assunto outra vez…”

Michael Schumacher durante entrevista para TV (Eurosport)

A resposta deixou implícito a referência a Ayrton Senna, mas era preciso confirmar isso com o próprio Schumacher. Para aliviar o clima engato uma conversa sobre seus carros particulares (tinha vendido seu Bugatti havia pouco tempo), chegamos à paixão pelos cachorros – ele e Corinne Schumacher adotaram um vira-latas brasileiro -, e falamos sobre suas ações de caridade em nosso País. Já estávamos conversando além da hora que me fora reservada quando encerrei a entrevista. Desligo o gravador e ele pergunta se parei de gravar. Ao ouvir que sim, solta, de bate pronto:

“Por que você me trouxe esse livro?”

Explico que ao me preparar para essa entrevista havia pesquisado outras exclusivas que ele havia dado e em uma delas um colega canadense escreveu sobre sua admiração por Stephen Hawkins, o famoso físico inglês falecido em 14 de março de 2018. Foi o suficiente para ele revelar:

“Eu nem conheço esse cara…”

Aproveitei a oportunidade e lembrei a pergunta que gerou o clima tenso. Expliquei a ele a necessidade de ter certeza da opinião e pontos de vista de um entrevistado para evitar escrever algo inverídico, como sua admiração por Hawkins… Ele sorriu, continuamos conversando por mais uma hora e a partir de então nos cumprimentávamos em aeroportos, restaurantes, paddocks e até gravamos entrevista entre o motor home da Ferrari e o estacionamento onde parou seu carro em Spa. Esse é o Michael que me confessou, durante a entrevista on the record em Fiorano:

“Estou numa posição em que ganho muito dinheiro, dinheiro que não vou conseguir nem poderei levar comigo quando morrer (…) Deus não me premiou com isso apenas para minha satisfação pessoal”.

Que não falte a Michael Schumacher os meios que contribuam para sua recuperação tão plena quanto possível.

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